(FOLHAPRESS) – Imane Khelif é campeã olímpica. Apenas o título da categoria até 66 kg do boxe em Paris-2024 deveria ser suficiente para registrar seu nome na história dos Jogos. Uma polêmica, provavelmente acelerada por motivações políticas, perseguirá a conquista e pode ter como resultado prático o fim de mais de um século do esporte em Olimpíadas.
Khelif, em um combate sem grandes complicações e muita torcida a favor, superou a chinesa Yang Liu nesta sexta-feira (9) em um cenário inusitado, a quadra Philippe Chatrier, em Roland Garros. Paris-2024 promove os Jogos mais sustentáveis, é simbólico mostrar que até o templo sagrado do tênis se curva aos novos tempos.
Os Jogos em Paris carregam também a bandeira da equidade de gênero, festejada até a hora em que a Cerimônia de Abertura pôs drag queens e transgêneros para dançar em cenas tomadas como a da Santa Ceia. E a bandeira da diversidade, ilustrada na propaganda oficial da prefeitura da capital francesa por um ostensivo beijo na boca entre duas mulheres.
O Comitê Olímpico Internacional também tem dado seus passos. Aboliu o cartão rosa, que definia o gênero por testes de nível de testosterona. A polêmica é antiga, assim como a inação dos dirigentes na busca de uma solução. Agora, vale o que está escrito no passaporte do atleta, o que para os críticos soa moderno, mas não enfrenta o problema.
A história de Khelif veio à luz no luta contra Angela Cariani, na primeira fase do torneio de boxe. A italiana abandonou o ringue se queixando da força da oponente. No esporte, porém, a novela já se arrastava desde o ano passado. A argelina, assim como a taiwanesa Liu Yu-ting, tinha sido impedida de participar do Mundial amador de Nova Déli organizado pela IBA (Associação Internacional de Boxe). Segundo a entidade, elas não passaram nos testes de elegibilidade para a disputa feminina.
Cromossomos X, Y e siglas como DSD (diferenças de desenvolvimento sexual, na sigla em inglês), caso mais provável das lutadoras, passaram a ser discutidas nas redes sociais com a falta de propriedade habitual. Até o COI se atrapalhou. Em entrevista coletiva, o presidente da entidade, Thomas Bach, declarou que “não se trata de um caso de DSD”. Em seguida, o comitê publicou uma correção informando que o dirigente quis dizer na verdade que não era um caso de transgênero.
Segundo especialistas ouvidos pela agência Associated Press, a polêmica mereceu atenção e impulsionamento dos serviços de desinformação da Rússia. A repercussão planetária alimentou de conservadores a militantes transfóbicos, de Donald Trump a Martina Navratilova.
Desde que o COI baniu atletas russos dos Jogos, devido à guerra na Ucrânia, a França lida com ataques sofisticados, trabalhados com ferramentas de inteligência artificial. Músicas, programas de TV, estudos e conteúdos de toda ordem surgem nas redes com certo verniz e em várias línguas, já que os robôs traduzem o material fabricado rapidamente. Insegurança, terrorismo, poluição do Sena, os exemplos de material de propaganda contra o evento são vários. Com Khelif não foi diferente.
A confusão no boxe é mais antiga. Denúncias de corrupção fizeram o COI organizar os dois últimos torneios olímpicos. Afastada desde o ano passado, a IBA, cujo dirigente é próximo a Vladimir Putin, foi banida do esporte em junho.
O comitê deu até 2025 para o esporte se organizar e buscar uma unidade entre suas várias entidades. “O boxe é importante para muitos países. Eles precisam se organizar”, disse Bach nesta sexta-feira (9). O boxe é importante para vários países sem recursos, como Cuba e Paquistão, que sem a modalidade se tornariam traço nos Jogos.
Arrastado para uma polêmica provavelmente fabricada ou no mínimo acelerada com intenções políticas, o comitê ganhou um argumento razoável para encerrar a questão do boxe, que consta do calendário olímpico desde 1900, quando Paris abrigou os Jogos pela primeira vez. A discussão sobre gênero no esporte, em um momento de grande transformação social, continuará.
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