SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Laura Cardoso está se sentindo muito bem, obrigada. É o que ela diz ao receber a reportagem em seu apartamento em Perdizes, bairro da zona oeste de São Paulo. A atriz veste blusa de gola rolê, calça e meias grossas. É fim de agosto, e faz frio no dia.
“Hoje estou meio ruim por causa do tempo. Detesto frio. Gosto é do calor”, diz ela, esticando a pronúncia das palavras com teatralidade. “Mas estou bem.”
Prestes a completar 96 anos -“Nossa Senhora, com muito prazer”, diz, ao ser lembrada disso-, Cardoso encara a câmera fotográfica como uma velha amiga. No ensaio que ilustra esta reportagem, ela sorri enquanto abraça a si mesma, faz caras e bocas, e dá risada para o teto.
Depois se aconchega no sofá e desata a falar. A atriz, que tem 80 anos de carreira recém-completados, está nostálgica.
“[Vejo minha carreira] com muita satisfação, amor e prazer. Espero que tenha deixado bons exemplos, belas lembranças de trabalhos, e que tudo de bom seja visto de novo”, diz. “Sou vaidosa, sou metida. Eu me acho.”
Cardoso está no ar na reprise vespertina de “Mulheres de Areia”, folhetim da Globo de 1993 que deu à atriz um dos seus papéis mais celebrados. Em junho, a emissora encerrou a reexibição de “Chocolate com Pimenta”, novela que está fazendo 20 anos e que trouxe Cardoso fazendo comédia.
A atriz ostenta um currículo com mais de 80 obras televisivas, entre folhetins, seriados e minisséries. Algumas das principais são “Pão-Pão, Beijo-Beijo”, de 1983, do escritor Walther Negrão, de quem ela se considera uma pupila, “Irmãos Coragem”, lançado em 1995, “Caminho das Índias”, de 2011, e o remake de “Gabriela” que estreou no ano seguinte.
Fisgou ainda dezenas de outros papéis nas radionovelas, onde começou sua carreira, no teatro e também no cinema. “Amei minha carreira. Gosto muito da minha vida. Amo representar”, diz, antes de se corrigir. “Acho que ainda preciso aprender a representar.”
É a fala de uma das atrizes mais premiadas do Brasil. Uma foto enquadrada na sala do apartamento exibe Cardoso recebendo seu troféu mais recente, o Oscarito, que ganhou no mês passado no Festival de Gramado pelo conjunto da obra.
Na ocasião, a decana foi convidada a enfiar as mãos numa placa de cimento fresco que, depois de seca, foi fincada na calçada de uma das vias da cidade. É como a Calçada da Fama de Hollywood, só que no Brasil.
“Me senti uma estrela”, ela diz, dispensando a comparação com celebridades hollywoodianas. “Do Brasil mesmo”, completa ao fazer cara de acanhada. O festival pretendia premiar também a atriz Léa Garcia, que morreu aos 90 anos após passar vários dias circulando pelo evento.
“Fiquei mal, fiquei muda. Eu não falava com ninguém”, relembra Cardoso. “Quando fui para o palco dizer alguma coisa, não saía. Eu tinha acabado de falar com a Léa. Ela estava bem. Fiquei feliz de vê-la, ela ficou feliz de me ver. Foi um baque para todo mundo.”
Cardoso também viu morrer recentemente Zé Celso, um dos mais importantes diretores de teatro de sua geração, e a atriz Aracy Balabanian, de quem recebeu uma homenagem no programa Encontro com Fátima Bernardes, em 2017.
“Essa gente faz parte da minha vida desde os meus 15 anos. Fico muito triste, tenho saudade, vontade de ver, de falar. Mas é o mundo, né? Chega uma hora que é tchau e pronto.”.
Cardoso não traçou planos para os seus 96 anos, a serem completados no dia 13 deste mês. Quer aproveitar para ficar perto da família e do público -diz até que espera um convite para voltar às novelas. A última vez que trabalhou na televisão foi no folhetim “A Dona do Pedaço”, da Globo, em 2019.
A atriz leva uma rotina tranquila, se dividindo entre a capital de São Paulo e Itu, cidade paulista em que tem uma casa num condomínio. Vive acompanhada dos parentes, dos livros e da televisão. Cardoso só não tem mais paciência para ver novela todo dia. Há produções decentes no ar, diz, mas boas mesmo eram as do seu tempo.
É que ela não vê com bons olhos os aparatos tecnológicos que a teledramaturgia passou a usar com o tempo. A veterana já reclamou mais de uma vez publicamente do dia em que uma diretora interrompeu sua interpretação no meio para ajustar equipamentos e enquadrar melhor outra atriz.
“Não gosto de tecnologia. Enche o saco”, afirma. “Tudo que é técnico é frio. Gosto mais do normal, do natural. Gosto de representar quando a vontade vem, quando o gesto vem, quando a fala vem. Eu preferia [as novelas] no meu tempo porque era difícil de se fazer.”
Parte dessa frieza se estende também aos enredos, que para ela são mais tímidos hoje. “Sinto que a gente está mais preso. No começo, como [a televisão] era invenção, a gente tinha que criar. Saía mais espontâneo e melhor. Hoje tem muita censura. Nas falas, nos gestos, em tudo. Naquele tempo havia, mas não tanto”, afirma.
São palavras de quem viu a cultura se transformar ao longo de décadas. Cardoso começou atuando só com uso da voz na Rádio Cosmos, aos 15 anos, em 1942. Migrou para as telas da TV Tupi uma década depois, em 1952, mesmo ano em que a emissora exibiu a primeira novela brasileira.
Em 1953, Cardoso foi escalada para uma adaptação da obra “Hamlet”, que seria exibida como novela na TV Tupi -só que ao vivo e em preto e branco. Foi só aos 54 anos, em 1981, que ela estreou na Globo com a novela “Brilhante”, já em cores. O resto é história.
Ainda que pense ter pessoas competentes na teledramaturgia hoje, Cardoso exprime certo desagrado por parte da nova leva de atores. “Tem gente que devia fazer outras coisas porque não nasceu para aquilo. [Estão lá] por ignorância, por besteira. Porque acham que sabem fazer. Não, você percebe se pertence ao meio.”
Há temáticas que vêm para o bem, ela afirma, como a vontade da televisão de atribuir protagonismo a pessoas negras e LGBTQIA+. “Vejo com naturalidade. Para mim é tudo igual -branco, negro, amarelo. Não tem essa de ‘porque eu sou negra, porque eu sou branca’. Já era. Não, não, não”, diz a artista.
Mas nem tudo mudou. Hoje há cada vez mais atrizes denunciando homens que trabalham no audiovisual por violência sexual ou verbal, como atesta o movimento americano MeToo, refletindo um problema que já existia quando Cardoso era jovem, como ela já disse em entrevista no passado.
À Folha, Cardoso conta ter sofrido assédio quando era mais nova. “Sempre, sempre e sempre. Faz parte”, diz, sem poder explicar se fala de violência sexual ou verbal, ao ser interrompida pela equipe que acompanhava a entrevista.
O que ela nunca sofreu é discriminação por ser idosa, o etarismo. “Nunca. Trabalho desde menina. Televisão e rádio foram as minhas casas”, afirma.
Cardoso não é de se esquivar de comentar pautas que tocam a sociedade. No passado afirmou ser feminista desde jovem, disse que homossexuais não podem ser censurados e que políticos brasileiros são safados e deveriam desaparecer.
Agora ela dispensa este último assunto. “Não tô nem aí para política. Presto muita atenção no meu país e no modo que ele vai fazendo as coisas. Se quero discutir política? Não.”
São palavras de quem viu o Brasil mudar por quase cem anos. “Espero que a cultura seja exercida”, afirma, quando questionada sobre o futuro. “Porque não é. Um país sem cultura morre. Não vive.”
E, então, interrompe a entrevista. “Estou cansada e não quero falar mais”, diz, antes de ouvir a próxima pergunta. É a deixa para a reportagem sair do apartamento.
Laura Cardoso só não deixa ninguém ir embora sem antes oferecer um cafezinho.
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